Um artista não precisa necessariamente de um ateliê.
Nas fotos que tiro em casa, o cenário é ora minha estante de livros, ora a sacada com suas poucas plantas. Quase não fico na sacada, as fotos que tiro lá são artificiais. Fico o tempo todo ao lado da estante de livros, as fotos que tiro aqui são quase espontâneas, meio feias mas coloridas pela lombada dos livros. Eu trabalho o tempo todo, ou quase, e os livros que aparecem nas fotos não são cenário pra parecer culta e inteligente, são minha companhia.
O ateliê pode ser invisível.
Quantos deles eu já li?, não sei, nem 10%. Um dia vou ler, um dia vou acordar e decidir que é este livro que preciso ler hoje. Eles me fazem companhia porque me lembram do que eu gosto, nos momentos difíceis, e me lembram de que meu trabalho é minúsculo, nos momentos trágicos e nos vaidosos. Os livros da estante são um cenário e uma fantasia.
Para alguns artistas, o ateliê é um lugar de disciplina e rotina. Para outros, é um lugar sem cronogramas e horários, um lugar de tempo não estruturado.
Não queria trabalhar o tempo todo, ou quase. Sou bastante organizada com horários e não me distraio fácil, costumo cumprir cronogramas mesmo que para isso perca os poucos momentos de descanso. Não queria trabalhar o tempo todo, ou quase, mas há muito a fazer. É por isso que meus olhos estão cansados e, a partir do começo da tarde, todo dia, já não enxergo mais tão bem. O oftalmo mediu e analisou meus olhos e confirmou que faz dois anos que nada mudou - o que mudou é que trabalho cada vez mais, sem me distrair, e os músculos desistiram de relaxar.
Um artista precisa vender obras ou conseguir um emprego para pagar o aluguel do ateliê.
Minha mesa se organiza numa bagunça dinâmica e feia, com uma pilha de livros que envelhece e pega pó do lado direito e, do lado esquerdo, pilhas sempre em mutação de livros, papeizinhos, post-its. Vejo fotos de ateliês de artistas e sonho com uma casa ampla e iluminada, com um mezanino de madeira e uma mesa enorme, várias pilhas organizadas pela lógica e pelos trabalhos em curso. Silêncio, árvores, e à minha frente um horizonte que me convida a relaxar o músculo dos olhos a cada meia hora. Nas artes visuais circula muito mais dinheiro que no mercado editorial.
O ateliê também é um cemitério, um lugar de ideias fracassadas que não foram a lugar algum e que podem ser recuperadas anos depois e reativadas.
Joguei fora um texto que passei dois dias escrevendo e editando. Era pequeno, ridículo, burguês, um texto feito pra cumprir a obrigação semanal. Não sei o que é mais frustrante, jogar fora um texto ou tê-lo escrito sabendo que era só pra cumprir uma obrigação autoimposta.
O ateliê é um lugar de dúvida, de erros e enganos. Às vezes, dúvidas, erros e enganos se tornam a obra.
A gente pode ter dúvidas e errar na internet?
O ateliê pode estar vazio e sem obras.
O ateliê não é o museu, é o que vem antes e não é público - mas pode acabar se tornando, quando dos bastidores passam a representar também o artista. O livro Espaços de trabalho de artistas latino-americanos, publicado pela Cobogó, reúne fotos lindas de ateliês e entrevistas com seus respectivos proprietários, fotos de deixar a gente pensando quanto dinheiro circula nas artes visuais e se todo mundo é organizado daquele jeito. Este livro é também uma companhia e uma fantasia.
Entrar no ateliê do artista é como entrar no labirinto do cérebro do artista, estar dentro do processo de pensamento do artista e entender como ele pensa e trabalha.
Não conheço a obra da chilena Cecilia Vicuña. Para esse livro, ela escolheu mostrar um rio como seu ateliê: o rio Mapocho. “O Mapocho é um rio selvagem que sempre fez parte de uma paisagem sagrada, mas, depois da colonização, foi domesticado e transformado em esgoto e depósito de lixo químico. Estão acabando com o rio e com uma tradição de 10 mil anos de pesca artesanal, matando tudo o que vive. […] Mapocho quer dizer ‘água que se perde na terra’, porque é um rio que desaparece. É quase uma metáfora do Chile, porque neste país tudo desaparece.'”
O ateliê é um local para visitas, onde o curador ou colecionador entram em diálogo com o artista e seu trabalho no local de produção. É o lugar onde os artistas se apresentam como são. Talvez seja o lugar onde o artista é mais vulnerável, mas também onde ele/ ela está mais empoderado/a e no controle.