Chopin, ou sem palavras
Ou ainda "um pássaro brilhante a esvoaçar sobre os horrores de um abismo"
Minha mãe conta que, quando eu tinha uns sete anos e foi chegada a hora de escolher meu instrumento na aula de iniciação musical, eu escolhi o piano.
O piano de armário em que ela mesma tinha estudado música quando mocinha foi então selado, registrado, carimbado e voou quatrocentos quilômetros da casa dos meus avós até a nossa.
Não posso confirmar nada disso, porque não tenho essa memória, mas confio na palavra da minha mãe. Acontece que meu instrumento sempre foi e sempre será o violino. De onde veio o piano?, não sei. Todo o trabalhoso carreto pareceu portanto em vão, pois comecei a ter aulas teóricas e práticas com um violino alugado, nessa nova fase das aulas de música.
Não durou tanto tempo; minha mãe conta que se encheu da minha birra de toda semana antes das aulas. Também não me lembro disso com precisão, mas não esqueço o tormento de ficar repassando os exercícios em casa, com a partitura grudada no vidro da janela do quarto; aos 10 anos, eu adiava a hora de estudar música, provavelmente frustrada por errar, por tirar um som de arrepiar a nuca sem conseguir me corrigir sozinha. Hoje, assistindo meu filho se frustrar com coisas semelhantes, e tendo ele o temperamento tão parecido com o meu, entendo e perdoo a Marianinha.
O piano não ficou servindo só pra apoiar chaves, carteiras, porta-retratos na entrada do apartamento. Minha mãe voltou a tocar, depois de um intervalo de uns 15 anos. Ainda me lembro do som surdo da tampa do teclado encostando no corpo do piano, com cuidado; do gemido do banquinho quando ela se sentava; da estampa e da textura do paninho (seda de um lado) que protegia as teclas e ela dobrava no início de cada sessão.
Nos dias bons, o temperamento meu, do meu filho e dos meus irmãos contempla a possibilidade de sair fazendo palhaçadas inesperadas, geralmente com o corpo - caretas, vozinhas, danças dos mais variados tipos. Nos dias bons, eu dançava ao som do piano da minha mãe. Eu, que nunca fiz balé, inventava braços e pernas, saltitava pelo palco estreito que era o corredor indo do piano até a porta do meu quarto.
Um dos meus números preferidos era Vozes da primavera, do Strauss. Sei cantarolar a música todinha até hoje, embora o título dela, e seu compositor, eu tenha descoberto há pouquíssimo tempo. É que, ao lado do idioma húngaro e do alfabeto georgiano, que infelizmente nunca vou saber, a linguagem da música e sua longa história estão guardadas no porão das minhas pequenas (ou grandes) frustrações, um lugar escuro que reúne tudo aquilo que não farei, não aprenderei, não realizarei, por falta de tempo, disposição, dinheiro. É como se a música estivesse escondida de mim.
Também faz muito pouco tempo que ouvi essa composição gravada. Ou assim me lembro. E que descobri o protagonismo dos violinos, tocando aquelas frases que, na minha dança primaveril, eram traduzidas em pulinhos solares de passarinho, enquanto eu tentava me aterrar com a marcação do compasso, com uma voz baixinha de fundo murmurando TUM-tum-tum/ TUM-tum-tum.
Essa valsa é a música da minha infância - a infância de uma mulher adulta que não sabe nomear o compositor ao ouvir uma peça canônica, que não sabe quem veio antes de quem, quais os períodos da música erudita, nada.
Que tal ouvir a valsa do Strauss com estas lindas imagens num PowerPoint, com direito a efeitos de transição? Desfrutem.
Tem uma segunda composição que, ainda que eu não dançasse (acho), ficou gravada na minha memória. Eu também não sabia até recentemente que era Chopin, que era um noturno, que era um dos mais famosos noturnos, o Noturno em mi bemol maior, op. 9, n. 2. Não era o único Chopin que minha mãe tocava, mas é o que sei de cor.
Ou será que eu soube de tudo isso e esqueci? No ano passado, fui abordada na Feira do Livro, em São Paulo, por um editor que queria me oferecer uma tradução do francês. Era o Leonardo Silva, que fundou a Zain para publicar livros que tenham a ver com música. E o livro era A senhora Pylinska e o segredo de Chopin, do Éric-Emmanuel Schmitt, que eu acabei traduzindo e que está saindo agora, nesta semana, mas melhores lojas do ramo.
O Leo me mandou o arquivo, li as primeiras páginas e topei. É bem raro que eu faça isso, principalmente porque costumo privilegiar autores ligados aos meus principais temas de interesse ou pesquisa. Música não era, em princípio, um tema de interesse nem pesquisa. Não lembrei da minha mãe tocando, do meu violino, quando topei fazer a tradução. Tudo isso que estou contando só me ocorreu algumas semanas atrás.
Eu vinha de uma sequência cansativa e ansiosa de dias, não conseguia pegar no sono, era impossível soltar a mandíbula e relaxar. Lembrei do Chopin, porque tinha trocado mensagens com o Leo sobre a edição, e coloquei pra tocar. Então tocou o Noturno, op. 9, n. 2 e, em vez de me embalar pra dormir, ele provocou essa avalanche de recordações.
Agora ouviremos Chopin olhando para a Noite estrelada de Van Gogh - afinal, “Noturno”.
Nas primeiras páginas de A senhora Pylinska e o segredo de Chopin, ficamos sabendo que o narrador protagonista se estranhava com o piano de armário que vivia na sua casa de infância, até uma coisa extraordinária acontecer:
No meio da sala ensolarada surgiu um novo mundo, um lugar remoto e luminoso que flutuava em camadas, pacífico, secreto, ondulante, que nos paralisava e prendia nossa atenção. Atenção a quê, não sei. Algo extraordinário tinha acabado de acontecer, a eflorescência de um universo paralelo, a epifania de um modo diferente de existir, denso e etéreo, rico e volátil, débil e forte, o qual, ainda que se mostrasse, conservava a profundidade de um mistério.
Era a tia dele, Aimée, que tinha tocado Chopin. A partir desse momento o narrador protagonista decide aprender piano, decide que vai aprender a tocar Chopin, e a narrativa então se desenrola, com lições que ele toma dessa tal de sra. Pylinska.
O texto do Schmitt é todo adjetivado, com descrições emocionadas da natureza, dos sentimentos, dos ambientes. Fui avançando nesse texto bem diferente do meu e do que eu costumo traduzir, aprendendo as lições da professora polonesa junto com ele, e no finalzinho do livro, quando chega a hora de arredondar tudo e preparar o grand finale, a tia Aimée tem uma fala que me deixou atônita, perplexa, e que eu revisei inúmeras vezes, buscando a cadência certa, as melhores palavras, tudo que transmitisse a força exata que ela tem. É uma fala sobre amor, é claro. E é claro que não vou copiar aqui.
Se não fala sobre amor o tempo todo, o livro coloca o amor numa posição bastante central. O amor romântico, sim, mas sobretudo o amor como disposição e abertura, num paralelo com o estado necessário para poder tocar Chopin. E, ampliando ainda mais os significados sem correr muito risco de errar, o estado necessário para fazer arte, para criar.

O romance em si é também uma aula sobre Chopin. Na boca da sra. Pylinska aparecem as principais informações biográficas sobre o compositor, assim como a rivalidade com Lizst, comentários sobre intérpretes e assim por diante.
Uma passagem que me impressiona bastante é quando ela fala dos supostos momentos de criação de Chopin, quando ele estava com George Sand em Maiorca no verão de 1838. Pylinska descreve situações concretas que teriam inspirado o compositor, para então desmentir furiosamente:
Ela [Sand] reduz tudo ao que conhece, a realidade, a realidade indigente que transcreve nos seus livros. Não passa de uma escritora, coitada, uma romancista, ou seja, uma escrava da realidade. Já Chopin é um músico; ele não usa as palavras, o que tem a dizer não pode ser dito pelas palavras.
Está aqui um dos mistérios da linguagem da música pra mim, dizer as coisas sem palavras. Mistério que não me é estranho, há tantas coisas que eu queria poder expressar sem elas. Mas essa língua eu não conheço, a da música, não sei traduzi-la.
Quem sabe fazer isso é José Miguel Wisnik, a quem, um dia, já devo ter ouvido falar sobre Chopin - mais uma coisa que eu devo ter sabido e esqueci, e que ficou latente no meio da avalanche. Esqueci, mas na internet encontrei um artigo que ele publicou em 2013 na Teresa, revista de literatura brasileira da USP. Vem de lá o subtítulo deste texto - “o pássaro brilhante a esvoaçar sobre os horrores de um abismo”, uma citação de Baudelaire a respeito da música de Chopin.
Vem de lá também o trecho que me fez entender, de maneira mais contextualizada, abstrata, filosófica, a fúria da professora na passagem que mencionei há pouco, das situações concretas que teriam inspirado Chopin.
É importante notar que, independentemente do vigor heroico e trágico que anima essas últimas [Mazurcas e Polonaises], elas timbram por se pronunciar no plano da música pura, resistente aos apelos e aos clichês da música descritiva. Chopin alinha-se ostensivamente a favor da primeira e contra a segunda, assumindo no debate romântico a posição de que a música, concebida tacitamente como a linguagem das linguagens, é expressiva não quando imita os poderes narrativos e descritivos da palavra, mas quando exerce soberanamente a sua autonomia.
Wisnik disserta mais extensamente sobre a linguagem artística de Chopin, remetendo também a esse episódio da viagem com George Sand, e trata de outros tantos temas, como o advento do piano (que coisa linda), e comenta algumas composições, e lembra que Chopin é o compositor de concerto mais presente na música popular brasileira (por exemplo, em Ernesto Nazareth e Tom Jobim). Caso não tenha ficado claro ainda, estou recomendando a leitura do artigo.
Chopin está presente também nas canções de Wisnik - o piano que mais ouvi na minha vida adulta. Um trabalho de pós-graduação, da Sônia Resende, me lembrou daquilo que talvez eu tenha um dia ouvido, sem saber, sem nomear, em “Valsa azul”, cujo acompanhamento lembra uma valsa de Chopin.
Vou terminar com ela. Desta vez, sem paisagens floridas no PowerPoint nem Van Gogh; sem descrever a música em imagens nem palavras.
Isso é spoiler de um futuro texto :)
E é com Chopin a passagem mais bonita de Ioga. Na versão de Martha Argerich.