Em pleno 2025, luto para me desvencilhar de um rígido preceito (chamemos assim) que me guia e me dá muito mais trabalho e problema do que orgulho ou satisfação. A motivação implícita dele pode ser resumida assim: odeio ver gente medíocre e mau-caráter se dando bem. Por essa frase vocês já entenderam o grau de sofrimento e tensão com que atravesso os dias neste mundo.
O preceito em questão é este: é errado indicar amigos para trabalhos. Ou, mais genericamente: é errado sair falando bem de amigos sem dizer que eles são seus amigos, como se você estivesse numa posição imparcial para avaliar a qualidade dessas pessoas.
[pausa para os risos]
Sim, pois é. Acho que nunca acreditei em imparcialidade, nem na faculdade de jornalismo, lá no começo dos anos 2000. E no entanto algumas experiências da vida vieram reforçando esse preceito - é aquela coisa, a gente fica revoltado com os toma lá, dá cá que vai presenciando, uma gente besta nadando em cada vez mais privilégios… e, se você quiser ter alguma coerência… Mas quem é coerente?
Enfim, a lógica que fica martelando na minha cabeça é óbvia, mas dita em 2025 soa ingênua demais, nem eu me aguento. A lógica é: para que sua palavra tenha valor, você não deveria estar implicado naquele elogio que está fazendo. Mais ou menos como os concursos públicos, em que uma pessoa da banca pode ser declarada suspeita. (Corta para os concursos na vida real, fora dos editais.)
É uma rigidez que me cria muitos obstáculos, ainda que subjetivos. Quantas oportunidades perdi numa dessas? Várias. Mas não vou sair expondo ninguém, tampouco a mim mesma; em vez disso, vou contar que estou arregimentando uma frase potente, uma máxima, que com sorte terá força suficiente para contra-argumentar dentro da minha cabeça e me fazer navegar o resto da vida em águas menos turbulentas. A frase: Diga-me com quem andas e eu te direi quem és.
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No começo da pandemia, cinco anos atrás, me inscrevi num curso oferecido pela pesquisadora e crítica de teatro Daniele Avila Small, que eu já sabia ser ótima. O curso falava de materiais de arquivo e de crítica de artista, e essa expressão me chamou atenção.
Uns anos antes eu tinha publicado algumas críticas de teatro na Folha e, embora não tivesse tido nenhum grande conflito, vivi algumas situações que, naquela época e ainda hoje, me faziam ficar pensando na posição, ou postura, de quem faz crítica.
Nada grandioso nem heroico, só a banalidade de sempre: a expectativa dos artistas quando sabiam que naquela apresentação haveria um crítico; minha necessidade de tomar notas durante o espetáculo versus a decisão de não fazer isso porque provocava ansiedade em quem estava em cena; algum ator meio besta que vem puxar papo com uma malícia inocente, falando da própria peça como quem não quer nada. E também, tempos depois, a vontade louca de escrever sobre espetáculos incríveis de amigos - mas são amigos. Meu rígido preceito jamais me permitiria. Nem os jornais, que ainda estão vivendo na era da imparcialidade.
No teatro, essas questões me pareciam mais escancaradas que na literatura. Mas também fiquei me mordendo de vontade de escrever uma resenha sobre um livro lindo de uma amiga, e não fiz.
A crítica de artista, que a Dani me apresentou em 2020, veio diluindo um pouco essa minha rigidez e me fazendo pensar em possibilidades. A ideia é que, pelo texto crítico, se possa estabelecer um diálogo inventivo, que mais que classificar, validar ou apontar qualidades e defeitos, possa ser um comentário onde quem escreve também exponha ideias suas, anteriores a essa obra ou suscitadas por ela, para assim caminhar junto, chegar a um lugar diferente.
Foi isso ao menos o que entendi da proposta, naquele momento. Nós lemos alguns textos e conversamos (eu ainda não li tudo nem conversei tudo que queria). Um deles foi a introdução do livro Altas literaturas, da Leyla Perrone-Moisés, em que ela trata da crítica literária exercida pelos próprios escritores (T.S. Eliot, Borges, Octavio Paz, Calvino, Haroldo de Campos, entre outros) e diz que, acontecimento da modernidade, isso se deve
ao fato de os princípios, as regras e os valores literários terem deixado de ser, desde o romantismo, predeterminados pelas Academias ou por qualquer autoridade ou consenso […] Cada vez mais livres, através do séxulo XIX e sobretudo do XX, os escritores sentiram a necessidade de buscar individualmente suas razões de escrever, e as razões de fazê-lo de determinada maneira. Decidiram estabelecer eles mesmos seus princípios e valores, e passaram a desenvolver, paralelamente às suas obras de criação, extensas obras de tipo teórico e crítico.
Já no teatro, analisando alguns ensaios publicados numa edição da revista Sala Preta, Marco Catalão observa (neste ensaio interessantíssimo) que, como em outras revistas acadêmicas e livros sobre as artes cênicas, os autores lançam mão de recursos antes pouco usados em críticas, como deslocamento do discurso analítico para o narrativo, com descrições subjetivas e metafóricos, utilização de suspense e desfechos inesperados, confissão de estados subjetivos perturbadores.
É como se um novo gênero (ou subgênero) estivesse em expansão, ele diz:
Apropriando-nos da denominação de [Jean-Pierre] Sarrazac, podemos vislumbrar o surgimento da figura do crítico-rapsodo, que não só analisa e descreve as experiências teatrais, mas também se apropria delas e as reconfigura a partir da sua leitura. Evidentemente, não há crítica neutra ou observação puramente objetiva de qualquer fenômeno; contudo, a ampliação do aspecto narrativo nesses textos […] os aproxima de um território fronteiriço – em evidente correlação com as experiências com que dialogam, frequentemente no limiar entre a representação ficcional e a ação performativa.
Mais do que isso, diz Catalão: “A narrativa sobre o experimento cênico ganha um grau de autonomia tão grande, a ponto de tornar-se ela mesma, a narrativa, um material artístico independente, com suas próprias latências e potencialidades – que podem ou não coincidir com as do experimento cênico que lhe deu origem”.
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A Dani publicou um longo ensaio, que ainda estou lendo, intitulado O crítico ignorante: Uma negociação meio complicada. Eu amo esse título. Ela explica:
A junção destes dois termos já é em si um desconforto. Espera-se que a crítica seja associada ao saber, ao conhecimento, não à ignorância. […] O propósito dessa aproximação [crítica e ignorância] é problematizar a crítica de teatro a partir do princípio da igualdade de inteligências.
Ela está partindo do Jacques Rancière, que em O mestre ignorante: Cinco lições sobre a emancipação intelectual fala sobre Joseph Jacotot e seu método de ensino subversivo na Europa do século XIX - sobre o qual a Dani discorre no livro. A ideia é que a figura do explicador seja problematizada: “O explicador simboliza, na visão que Jacotot tinha da sociedade em que viveu, a incapacidade do indivíduo de aprender sozinho”.
Nesse contexto de pensamento, a crítica só faz sentido se uma determinada classe de pessaos fizer a suposição de que existe outra que lhe é inferior. A crítica teria, então, como pressuposto básico, a “emancipação” dos inferiores, dos despreparados, dos pobres espectadotes incapaz de pensar. […] A explicação é uma mediação entre o alto e o baixo; mediação esta que não trabalha para ser superada, apenas para ser mantida.
O crítico ignorante, em oposição esse pensamento, imagina que a inteligência e a vontade do espectador o levem a uma aventura intelectual; ele fala com os espectadores interessados, que não são nem mais, nem menos inteligente do que ele (ou do que o artista, ou qualquer outra pessoa). O espectador é um interlocutor possível, alguém que esteja a fim de “tatear no escuro, tentando discernir as formas que encontra”. Uma conversa entre iguais. Um jogo.
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Acabei incorporando esses pensamentos ao meu jeito de ler e comentar as coisas, seja como palpitadora de newsletter, como amiga que dá pitaco no que os outros escrevem ou como editora cuidando de um original ou de uma tradução.
Estou editando um livro de uma companhia de teatro e vocês não imaginam a maravilha que é trabalhar com gente do teatro. O autor do texto me disse assim, numa reunião desta semana: Vou te mandar os capítulos ainda sem os detalhezinhos finalizados, porque sei que você vai me devolver com comentários que vão me fazer repensar pontos importantes, então elaboro o que você disser e entrego a versão final.
Quase chorei de emoção. É a ideia do ensaio, do jogo, da troca, aplicada ali no processo de edição. É a possibilidade de, como editora, fazer perguntas e apontar caminhos, e ter do outro lado alguém que funciona na mesma vibração e vai pegar essas provocações e transformar em algo mais seu, idealmente melhor. É raro, mas acontece encontrar gente assim.
Na mesma época em que escrevi críticas, comecei uma pesquisa sobre dramaturgismo, que quis continuar na Alemanha mas não rolou a bolsa necessária para isso. Trabalhei aqui em São Paulo com um grupo fazendo esse papel, que pode se desdobrar em funções variadas - nos teatros estatais da Alemanha, por exemplo, o dramaturgista é quem faz as adaptações de textos da literatura pro palco, braço-direito do diretor. Aqui no Brasil o dramaturgista pode ser uma espécie de crítico interno do grupo, assistindo aos ensaios e dando feedbacks; pode trazer referências para a pesquisa da companhia; pode fazer mediações entre os artistas e o público, conduzindo debates…
Na minha experiência, esse trabalho guarda semelhanças bem grandes com o de um editor de livro, ao menos com o tipo de editora que gosto de ser. E fica daí a questão de como essa postura, essa posição, se modifica quando o produto já está pronto: quando você é crítico de um livro publicado, de um espetáculo pronto. Dá para continuar um diálogo? Parece que dá.
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Faz uns bons anos que trabalho no mercado editorial e, como é de esperar, a maioria dos amigos vem também desse mundo. Gente da edição, mas também autores. Quando dá tempo, tenho lido esses amigos, colegas ou amizades em potencial, e fico doida de vontade de escrever sobre os livros deles. Escrever deste jeito que vocês já entenderam: conversando.
Vou criar uma rubrica nesta newsletter, chamada: Não é porque é meu amigo. Não, não é a negação mais que eu quero; é porque são meus amigos. Diga-me com quem andas. Eu ando com gente bem legal e acho que vocês deviam ficar sabendo o que eles fazem por aí. Não é gente medíocre nem mau-caráter, e isso vocês vão sacar de cara. Se não sacarem, vão ter que acreditar em mim. É assim que funciona.
Em breve, falarei dos meus amigos-escritores.
Não é porque você é meu amigo que não pode indicar esta newsletter. Espalhe a palavra! Juro que não vou achar que você está querendo algo em troca.
Essa newsletter retoma os valores da poética clássica: deleita e instrui. Até fui ler o artigo do Marco Catalão, que é interessantíssimo mesmo.
eu falo muito isso quando recomendo livro de amigos: "eu queria não ser tão amiga pra poder gostar em paz". mas eu não sou crítica, eu dou dicas, então espero passar pelo seu crivo crítico haha (mas de todo modo vou te mandar um video do orson welles pra gente continuar o debate). adorei!