o MEU carrère
A loucura lúcida de pesquisar e traduzir um escritor vivo e relativamente acessível
Foi na Flip de 2011 que conheci o Emmanuel Carrère, e foi por acaso. Entrei na tenda dos autores de Paraty pra ouvir Péter Esterházy, que tinha lançado um romance sobre a morte da mãe dele e falaria de literatura e família, um dos meus temas. Quando vi, do lado do húngaro tinha aquele francês simpático e articulado contando de um livro em que ele revelara um segredo da mãe, o que tinha deixado ela furiosa. Coup de foudre.
Acabou a mesa de conversa e comprei Um romance russo ali fora mesmo. Comecei a ler na hora e, dois anos depois, estava pesquisando o livro no mestrado. Já em 2013 entrevistei o autor pela primeira vez, no ano seguinte nos conhecemos ao vivo, no outro trabalhei na preparação de texto de um livro novo dele… Corta para 2020, quando comecei a traduzir Emmanuel Carrère.

Aqui ficaremos com essa versão curta da história. Mas essa cronologia é extremamente detalhada na minha cabeça, tanto por acontecer em uma espécie de progressão, o que me dá uma sensação de coerência (sempre bom, no meio do caos da vida), quanto por me ajudar a elaborar essa relação meio doida entre autor vivo e pesquisadora, entre autor vivo relativamente acessível e tradutora, entre autor vivo de uma obra autobiográfica e leitora vivíssima que adora uma problematização ética da escrita de si.
(Vale dizer que essa relação é quase sempre de mão única - talvez o melhor nome pra isso seja “sentimento”.)
Há quem diga que ele é “o meu Carrère”. Dou risada pra descontrair mas por dentro penso: É MEU, SIM, QUE BOM QUE VOCÊ SABE. Feito ciúme de mãe. Como aquelas pessoas (meio ridículas) que se sentem embaixadores de um artista ou de uma obra, que arrogam a si mesmas o título de descobridor ou grande conhecedor de algo ou alguém. Faço igualzinho dentro da minha cabeça: quando alguém fala ou escreve dele, vou verificar se a pessoa foi precisa, justa, digna. E daí acho a mim mesma ridícula, tento rir um pouco para descontrair também por dentro.
Mas isso virou coisa divertida e, passados tantos anos, distanciada - a ponto de eu contar numa newsletter. É uma espécie de brincadeira minha comigo, uma puxação de tapete das partes menores e mais vaidosas de si mesma. Uma espécie de loucura escolhida, loucura lúcida. E que me afasta pelo deboche, eu acredito, do perigoso território do fandom (Deus me livre ser fã de alguém).
Meu filho me ajuda muito nisso; ele apelidou um queijo francês de “Emmanuel Carrère” e passou uma semana pedindo: “Mamãe, pega o Carrère na geladeira”. Era impossível não rir da situação e do tempo e peso desproporcionais que às vezes eu dedico a um trabalho, a umas abstrações, a uma admiração/paixão intelectual. (Os outros queijos se chamavam Annie Ernaux e Clarice Lispector. Coitado do meu filho.)
Ioga talvez tenha sido a sua porta de entrada à obra dele, e se foi você vai entender bem isto aqui: a vida mental de Emmanuel Carrère parece ser bastante atormentada. É o que ele conta, e não apenas em Ioga; em Um romance russo, fala de tormentos psíquicos seus, traçando paralelos com um personagem de Dostoiévski (o homem de Memórias do subsolo) e com o próprio avô, como se essa saúde mental periclitante fosse uma herança - não acho que ele acredite em constelação familiar; acho, sim, que ele é um grande escritor, que argumenta muito bem nas suas narrativas.
A gente não imagina que ele vá sair arrancando os cabelos no meio de uma entrevista de divulgação de um livro, nem que vá tratar uma pesquisadora mal. Tampouco temos dificuldade de conciliar, ao mesmo tempo que separamos, a imagem que ele cria de si nos livros - em que fala de situações privadas, íntimas - com a imagem de um senhor que vive bem na sociedade francesa, recoberta por vernizes e cordialidades. A gente sabe que literatura é outra coisa, que o espaço em branco da tela e do papel acolhe com mais generosidade as hesitações e as dúvidas, que ele topa tudo.
E, no entanto, os textos autobiográficos criam um interstício, um vão entre o homem do papel e o homem de carne, que é onde podem habitar muitas fantasias. Cito um momento em que vislumbrei isso. Em 2023, Carrère deu uma entrevista a uma apresentadora conhecida na France Inter; uma conversa simpática de dezessete minutos sobre literatura e sobre o lado georgiano, materno, da família dele - tema do próximo livro, que em algum momento será publicado e que estou ansiosíssima para ler e traduzir.
Lá pelo minuto 15, a apresentadora anuncia uma seção de “Improvisos”, em que vai lançar perguntas que ele deve responder sem pensar muito, como: “Sua droga favorita?”. Ele pensa, fala que não sabe, que não curte drogas mais, que a resposta é meio besta mas seria “o trabalho”. A reação espontânea da apresentadora é aquele bufar francês de quem tira sarro, ele ri como se se desculpasse, ela ri de volta e diz: “Achei que você ia dizer que era o sexo. Estou um pouco decepcionada, eu tinha certeza de que seria o sexo, pelo que a gente lê nos seus livros”. Ele se ajeita na cadeira, diz: “É, também, também”.
Eu também fiquei constrangida do lado de cá. Não sei se pela apresentadora e sua espontaneidade, pelo escritor e a exposição da intimidade sem a proteção de capa e contracapa, por essas fagulhas que escaparam do atrito inesperado entre o homem de carne e o homem do papel. Em que medida a gente pode ou deve sair contando para os outros a imagem que faz deles? Seria muito esquisito se eu contasse que ele virou um queijo francês na minha casa?
A falta de jeito, o pudor de não saber bem como se aproximar, oscilou com os anos e a posição em que estive; dez anos atrás os Rs da mestranda eram ainda mais enrolados e ela errava tudo que queria falar quando ficava nervosa; hoje em dia me lembro sem dificuldades do que ele mesmo contou em 2011, lá na Flip - sobre se expressar em uma língua que não é a sua materna, no caso dele o russo - e, a esta altura, não há grandes dificuldades em escrever um email falando de tradução.
Este texto é sobre o autor, mas em outros lugares falei da obra: no Instagram fiz um vídeo sobre Ioga e outro sobre Um romance russo.
Há, no entanto, também um interstício entre a mulher de papel e a mulher de carne, entre o autor e a tradutora - duas duplicações do escritor em quem traduz, que entraram em erupção quando eu estava terminando de traduzir Ioga.
A primeira talvez seja óbvia e faz parte do acordo de trabalho: por mais autoral que seja um trabalho de tradução, e ele é muito, o que me esforço para expressar bem, adequadamente, em português, não é o que penso, sinto ou gostaria, são os pensamentos e as histórias de outra pessoa. O intervalo entre o que eu sou e o que eu escrevo é imenso, maior ainda de quem escreve (a própria) ficção. Quando esse vão fica menor, quando eu concordo demais ou entendo demais o que ele escreveu, aquele sentimento de possessividade fica inversamente maior, e é nesse momento que o queijo Carrère me ajuda a voltar para o chão.
Já a segunda duplicação é mais capciosa, sutil e saborosíssima, e dela ainda não sei como me distanciar, nem sei se quero. Aconteceu de novo no fim do ano passado, quando eu estava revisando minha tradução de um livro da Annie Ernaux e, na iluminação baixa da madrugada, acreditei ter visto minhas mãos envelhecerem quarenta anos ao digitar aquelas palavras. Antes disso, tinha acontecido pela primeira vez em 2021, quando eu estava terminando Ioga, e também por causa das mãos.
Quando o livro saiu na França, em 2020, fui lendo o ebook desbragadamente, isolada pela Covid, até parar para trocar emails com o editor brasileiro, tratando da tradução. Parei definitivamente de ler quando faltavam uns 10 ou 15%, segundo meu kindle, e comecei a traduzir; queria ser surpreendida pelo final, o que só aconteceria meses depois.
Eu tinha um prazo ótimo, eu tinha tempo, e fui fazendo como de costume: comecei numa velocidade ensandecida, me preocupando menos com a precisão das palavras e mais com o tom, com o ritmo do texto, e depois de algumas dezenas de páginas voltei pro início para retocar, e fui vivendo nesse vaivém enquanto avançava.
Lá pelas tantas, bem no finalzinho, e portanto meses depois do começo da tradução, Carrère começa a contar sobre Paul Otchakovsky-Laurens, fundador da editora P.O.L., o homem que havia editado doze livros seus e que, na última vez em que se viram, assustou-se ao descobrir que Carrère digitava com um dedo só, com o indicador direito. Ele conta então que fez um curso online de datilografia e que Ioga, este livro que o leitor está lendo, havia sido digitado de outro modo, o que talvez significasse que este era um livro diferente.
Provavelvemente não é uma revelação de grande impacto para vocês, leitores, nem spoiler chega a ser. Mas para mim e para outras cinco, dez, quinze pessoas - em que idiomas Ioga já foi traduzido? -, essa descrição de como ele escreveu o que apenas eu e outras cinco, dez, quinze pessoas também escrevemos, me fez estacar. Como era que eu tinha escrito Ioga? Com quantos dedos, em que ritmo, e tinha sido também uma meditação ou era mais um job (não, isso nunca é)?
A risadinha no canto da boca, o tapete que eu mesma estiquei pra ele puxar: essa mania de não ler até o fim antes de traduzir, de ter parado na beiradinha desse precipício, eu não sabia mas ela preparou essa surpresa, esse susto, e mudou pra sempre o jeito como vou traduzir. Fantasiando com eles e a escrita deles enquanto digito os mesmos pensamentos e histórias. Como se nos tornássemos um duplo por meio das palavras.
Isso eu vou contar pra ele quando nos encontrarmos de novo, sem muito pudor.
Puxa, Mariana! Cheguei agora na newsletter, mas fui maratonando textos e cheguei nesse daqui.
Comecei a ler (e prometo continuar!) sua dissertação de mestrado, porque o Carrère tem me movimentado muito. Tenho lido e ficado muito impressionada com os livros dele, comecei por Ioga, fui para O Reino, Um Romance Russo, e agora V13.
E uma coisa que me incomoda muito: parece que muitos textos que falam sobre os livros aceitam (sem qualquer dúvida crítica!!!) o enquadramento que ele faz sobre as histórias que está escrevendo. Tomando Ioga como exemplo, li tanto por aí que o livro é "um livrinho simpático sobre ioga... que ele """teve que""" abandonar o retiro...". E eu fico abismada! Porque me parece impossível não desconfiar desse narrador! E do quanto tem de espaço, como você disse, entre realidade e papel - e ioga parece ser tão pouco sobre ioga, sei lá, talvez sobre a relação dele com a ioga ou com uma procura por paz, vazio, silêncio mental, mas principalmente a relação dele com a loucura, com ter se descoberto bipolar, com uma reavaliação da vida a partir disso.
E aí, queria perguntar: o que vc acha disso? Os livros do Carrère são mesmo sobre o que ele diz que são?
Que texto... forte. T'en que ter um Carrère pra ancorar. O queijo, no caso.