A nossa Ernaux
Um texto sem números, cheio de sonhos, desencontros e falsa intimidade
Acordei, uma hora atrás, de um sonho longo com a Annie Ernaux. Longo, banal e bonito: havia apenas mulheres, era alguma festa comum no quintal de alguém, umas cadeiras, e ela ali no meio, ali junto. Era a estrela, sim, mas não porque brilhava; era uma senhora idosa que todas admirávamos, respeitávamos, e queríamos por perto. Em algum momento nos dávamos as mãos, de algum jeito eu contava para ela como seu último livro que traduzi, Memória de menina, me abalou, ainda me abala - como os outros, mas ainda mais. Não devo ter conseguido articular tudo que penso do livro, e dela; se ao vivo, na vida, já é meio complicado, sem auxílio do tempo e dos parágrafos, imagine num sonho num quintal. Não tem problema.
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Aquele recurso da Microsoft, que manda emails com suas lembranças de outros tempos, me mandou na semana passada umas fotos da Ernaux de fim dos anos 1990. São as imagens que fazem parte do livro L’Usage de la photo, que traduzi parcialmente, um ano atrás, para uma edição da revista ZUM. Nesse livro, ela e Marc Marie, seu namorado da época, escrevem textos curtos sobre sua relação, a partir de fotos que tiraram depois de fazer sexo: roupas do avesso no chão, objetos projetados pela pressa de um braço que desocupa uma mesa varrendo-a, lençóis amassados, a bagunça do jantar da noite anterior. Ele também conta, com um olhar de quem não é das letras, como enxergava essa mulher, como seu olhar foi mudando; do lado dela, sabemos sobre seu tratamento contra um câncer de mama. Chegou essa notificação no computador e no celular, relembre momentos felizes, e lembrei da Ernaux transando e tratando um câncer ao mesmo tempo, lembrei de mim não transando e traduzindo partes desse livro à beira de uma piscina, num hotel do interior de São Paulo, quando fui visitar meu avô um ano atrás.
Não lembro por que fomos visitar meu avô nessa data especificamente, mas vou inventar que era por causa do aniversário da minha avó, 17 de abril. Minha avó morreu em 2018, por causa de um câncer, e não teve outro namorado além do meu avô, dos 12 ou 13 anos aos quase 80.
Quando acordei do meu sonho bonito, vi no celular que o papa Francisco tinha morrido, aos 88 anos. Pensei na hora na Ernaux, que em setembro faz 85. Ela é da geração dos meus avós, eu penso nela como uma avó, e imaginar que ela vai morrer dói quase na mesma medida em que pensar na morte das minhas avós. Penso muito nisso.
No ano passado, um jornalista me encomendou um obituário da Ernaux. Ela não estava doente nem nada, mas está na casa dos 80 e jornalismo é assim, precisa ter tudo pronto para não ter de produzir de uma hora para outra os textos que sabe serem inevitáveis. Fiquei comovida e no dia seguinte encaixei esse trabalho entre outros já combinados previamente.
Tirei seus livros da estante, montei uma pilha e me pus a reler os que já tinha lido, numa ordem específica para este fim. Abri uma subpasta nova dentro da pasta Annie Ernaux do meu computador. Juntei uns textos críticos em PDF e na internet. Abri um arquivo chamado “Trechos”, outro chamado “Biografia”, e fui alimentando aos poucos, nas brechas de outros frilas.
Umas semanas depois da data combinada pra entregar o texto, o jornalista me cobrou e respondi que ainda não estava pronto. Mortificada de culpa, mas não tinha conseguido me dedicar a isso integralmente por causa dos outros prazos (boleto é foda, gente). Perguntei se ela estava doente (eu me perco em pensamentos assim, às vezes), ele disse que não. Ufa. Me deu mais umas semanas, não entreguei de novo, pelos mesmos motivos, boletos e prazos. Então ele me mandou uma mensagem de zap avisando que não precisava mais, que ia passar o job para outra pessoa.
Naqueles três meses de pesquisa e anotações, eu vinha maquinando uma estrutura de texto que, além de caber nas limitações do jornalismo, contemplasse com dignidade a vida da futura morta. Leitora e tradutora de Emmanuel Carrère que sou, fiquei repensando no caminho que ele fez em O Adversário, entre 1995 e 2000, quando ficou se debatendo com a decisão de qual posição, qual postura adotar para contar aquilo que precisava contar. No caso dele, a história de um homem que matou a própria família e com quem ele se correspondia, sem se sentir exatamente ao seu lado, mas com um interesse de origem estranha. No meu caso, uma antiga jornalista e atual tradutora. Era pra ser mais simples.
Havia nessa conta, nesse quase dilema, um componente bem pouco racional ou razoável: o temor que passei a ter de, ao escrever a frase de sua morte, acabar provocando-a. Claro que não acreditava de verdade que isso pudesse acontecer, mas dizer a morte de alguém querido antes que ela sequer pareça provável é coisa dura. Deve ter algum livro de realismo mágico que fale desse medo do ponto-final (me indiquem, por favor, não estou lembrando de nada agora). De modo que, apesar de muitos pesares, me senti muito livre ao ser desobrigada da função de matá-la.
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Memória de menina, que está para sair, é um livro de uma mulher que viveu muito, refletiu e escreveu muito, e está mais uma vez sob risco ao escrever um novo livro. É um livro vivido, de alguém que não quer morrer.
Quando estava terminando de traduzi-lo, já contei aqui, delirei com as minhas mãos digitando aquele texto, me senti um pouco em cena: é a voz de outra pessoa que estou falando, mas com o meu corpo. Por causa disso, e provavelmente também pelo cansaço, naqueles dias (e noites) me assustei olhando para as minhas mãos e enxergando mãos de uma pele fina feito papel, de 84 anos, de muita vida acumulada e elaborada em texto. Parecia sonho.
Por isso o sonho de algumas horas atrás me comoveu, também. A parte das mãos dadas.
Vocês devem saber, a esta altura, que lá na França as pessoas não morrem de amores pela Annie Ernaux como nós aqui. No perfil que fez da Ernaux, que saiu na Quatro Cinco Um com tradução minha, a Rachel Cusk resumiu a reação que se deu lá ao anúncio do Nobel:
Na França, país que se tem em alta conta por sua cultura literária, a notícia do Nobel provocou uma irrupção febril de orgulho, mas também explosões assombrosas de veneno. Como é que uma mulher que só escrevia sobre si mesma podia ganhar o maior prêmio literário do mundo? Madame Ovary, como foi chamada por um crítico francês conservador, era o exemplo paradigmático da erosão da arte literária pelas narrativas de autocomiseração e marginalização. A inteligência — e até a sanidade — do comitê do Nobel parecia estar sendo questionada. Me explicaram que, na França, expor aspectos pouco glamourosos da realidade feminina — as reclamações da bonne femme, ou dona de casa — era amplamente considerado de mau gosto. Ao que parece, havia também a questão do ciúme — do sucesso de Ernaux, do frescor dos leitores dela, e agora desse grande prêmio — por parte da velha guarda literária masculina. Mas, para mim, essas explicações eram desnecessárias: as agressões eram simplesmente a evidência de que o ponto nevrálgico da verdade havia sido tocado.
Em A escrita como faca, a própria Ernaux falou da recepção crítica que tinha em seu próprio país, muito antes de saber que levaria o grande prêmio da literatura:
… críticos em sua maioria parisienses e homens, ocupando posições de poder na imprensa, se enfureceram com o que escrevo. Com o conteúdo e a forma. Sou criticada por uma obscenidade dupla, social e sexual. Social porque, em livros como O lugar, Uma mulher, A vergonha, mas também Journal du dehors, transformo em material de escrita a desigualdade de condições, de cultura, evitando o populismo, que seria tão reconfortante, aceitável… Sexual porque, em Paixão simples, que foi um barril de pólvora, descrevi tranquila e minuciosamente a paixão de uma mulher madura — vivida no registro adolescente e do “romance”, mas também muito físico — sem as marcas afetivas, a lamentação, sem esse “romanceamento” que justamente se espera daquilo que é escrito por mulheres. […] (A propósito, repare que tais frases foram ditas por pessoas que se dizem de esquerda e que, assim, revelam seu secreto desprezo de classe.) […] Acho que um pequeno número de críticos não me perdoa por isso, pela minha maneira de escrever sobre o social e o sexual, por não respeitar uma espécie de decoro intelectual, artístico, ao misturar a linguagem do corpo e a reflexão sobre a escrita, ao ter interesse tanto pelos hipermercados e pelo trem quanto pela biblioteca da Sorbonne. Isso os agride…
Ela continua dizendo que não se lê, a respeito de um livro escrito por um homem, o que às vezes se lê a respeito de livros escritos por mulheres (por ela). E completa assim: “Do mesmo modo, na imprensa não se chama um escritor do sexo masculino apenas por seu primeiro nome, como frequentemente fazem em relação a mim…”
Quando comecei a ser jornalista, tantos anos atrás que parece outra vida, me ensinaram que a regra na imprensa é referir-se aos homens pelo sobrenome (Carrère), às mulheres, pelo primeiro nome (Annie). Eu adorava pensar na Ernaux como Annie, porque assim inventava que ela estava mais próxima. Depois de traduzir A escrita como faca, só a trato por Ernaux.
(Fico pensando nos muitos jornalistas homens que atrasam a entrega de trabalhos sem dar nenhuma satisfação, sem culpa alguma. Será que eles também recebem mensagem por zap dizendo que não precisa mais entregar?)
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Semanas atrás, elaborei uma hipótese toda sociologizante pra tentar pensar o sucesso editorial no Brasil da Ernaux (e do Édouard Louis, se quisermos, mas ainda não o li direito). Era uma hipótese que tinha a ver com mobilidade social, com a possibilidade de haver mais trânsfugas de classe (prefiro “desertor”, como tradução) no Brasil hoje do que na França.
Dei dois Googles e descobri sem espanto que tem muito mais mobilidade social lá do que aqui, de modo geral; seria preciso circunscrever a população ao universo de leitores, e pensando nisso desisti. Não conheço os números de vendas da Ernaux, mas vamos chutar alto e pensar que algum título best-seller vendeu, por aqui, 10 mil exemplares. Que teoria dá pra esboçar numa bolha dessas?
Mesmo sem poder expor isso em números, acho que devemos amar Annie (sic) porque nós, leitores da classe média, avançamos de algum modo, em relação aos nossos pais, na integração com as pessoas que importam, e lemos nos livros dela nosso deslocamento. Não é uma ideia muito inédita nem espetacular, ainda mais sem os números, mas ainda acho que é algo a se considerar - lembro quando, em 2014, li O lugar e pensei muito no meu pai; quando, no mesmo ano, li Retorno a Yvetot e quis dar de presente pra um amigo; quando meus amigos desertortes de classe começaram a se apaixonar por Ernaux.
Mas você pega O lugar, O acontecimento, Uma mulher, e vê como ela descreve o tipo de vida que vivia, pega Memória de menina e vê como ela descreve o tratamento que recebeu de outros jovens da idade dela. Joga isso numa linha do tempo da história - ela já fez isso, em Os anos. Não sei vocês, mas eu baixo minha humilde cabeça de leitora burguesinha privilegiada e falo: a Ernaux.
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Nunca encontrei a Ernaux, nem quando ela veio ao Brasil - e eu ainda não a traduzia, nem faço parte das pessoas que importam -, nem quando fui à França, num feriadão do ano passado em que ela não estaria em casa. Por isso também o sonho desta noite foi tão bonito e inesperado, no quintal. Inventei o encontro, na falta de um, quando nem estava mais pensando que ele poderia acontecer.
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Em breve vou escrever uma news só sobre Memória de menina. Talvez em junho, quando todo mundo já tiver lido. Vai ser mais objetiva que esta, falando do livro, mesmo. Mas ainda vai ser meio afetada.
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P.S.: A foto que ilustra este texto vem do livro L’Usage de la photo e foi publicada na revista ZUM (e numa crítica do NYTimes). É o chão da cozinha da Ernaux, com roupas espalhadas, e escolhi porque dá a sensação de intimidade, de que estamos perto dela, a conhecemos. Spoiler: é truque de escritor.
Annie Ernaux e Marc Marie, “O uso da foto”, ZUM, abr. 2024. Trad. Mariana Delfini.
Annie Ernaux, A escrita como faca e outros textos. Trad. Mariana Delfini. São Paulo: Fósforo, 2023.
Annie Ernaux, Memória de menina. Trad. Mariana Delfini. São Paulo: Fósforo, 2025. [em pré-venda; envio a partir de 5 de maio]
Rachel Cusk, “O impacto da sinceridade”, Quatro Cinco Um, jul. 2023. Disponível aqui. Trad. Mariana Delfini.
*hoje, um bloco só de Trad. Mariana Delfini
Isso aqui resume meu afeto por Ernaux (e pela Delfini): "Mesmo sem poder expor isso em números, acho que devemos amar Annie (sic) porque nós, leitores da classe média, avançamos de algum modo, em relação aos nossos pais, na integração com as pessoas que importam, e lemos nos livros dela nosso deslocamento"
Não tinha muita curiosidade pelos livros da Annie Ernaux, mas com seu texto fiquei com muita vontade de ler!! Muito legal encontrar a tradutora dela por aqui hehe